quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O feminino e a Deusa


A Deusa está na origem da vida. Ela é a Totalidade que cria o mundo a partir de si mesma, sendo ela o próprio mundo que contém todas as suas criaturas.

Os mitos da criação retratam simbolicamente o ato do nascimento. O tema geral do simbolismo da Deusa está intimamente relacionado com os mistérios do nascimento, da morte e da renovação da vida. Assim é que ela geralmente emerge das águas primordiais ou é, ela própria, estas águas das quais emerge para dançar e, com seu movimento, criar tudo que existe.

A criação/nascimento é inseparável da figura da mãe, que nos mitos mais antigos era a divisora das águas, criadora do céu e da terra. No neolítico, a Deusa era cultuada como a fonte das águas que sustentam a vida, que caíam do céu em forma de chuva ou brotavam da terra como fonte, rio ou lago; a água representava o poder gerador da grande mãe, que ela oferecia ou negava.
A Deusa dos primórdios

Em todas as suas múltiplas funções, ela sempre vem acompanhada de animais e freqüentemente é representada parte humana, parte animal. Como a Senhora dos Animais era representada como Deusa-Pássaro das águas celestes, ou Deusa-Peixe das águas subterrâneas. A Deusa-Serpente era o símbolo de sua capacidade de regeneração e fecundação.

O movimento ou eterno fluxo aquoso é associado ao sangue menstrual, por exemplo no mito de Kali-Ma: “Quando não havia criação, nem o sol, a lua, os planetas e a terra, e quando a escuridão estava envolvida em escuridão, então a Mãe, a Sem-Forma, Maha-Kali, o Grande Poder, era uma com Maha Kala, o Absoluto”. Do rompimento, da abertura desta mãe escura e sem forma surge a luz - a criação do mundo.

Este rompimento, esta abertura, foi chamada pelos gregos de Chaos, que, ao ‘entreabrir-se’ (significado da palavra khaos em sua forma verbal khaino), dá à luz Gaia e Eros. Em seu significado original, caos não se refere à desordem, mas ao espaço vazio do qual emerge a forma, a Grande Deusa Mãe chamada de Gaia e sua energia amorosa chamada de Eros.

O mito órfico da criação relata como a Deusa dançou sobre as águas primordiais e, do vento que se formou pelo seu movimento, ela criou seu parceiro, com quem então povoou o mundo. O mais antigo nome conhecido de uma divindade criadora do universo é talvez o da sumeriana Nammu. Descrita em alguns poucos fragmentos extremamente antigos como “a mãe que deu nascimento a céu e terra”, o ideograma usado para seu nome também designa ‘oceano’ e é a palavra sumeriana para ‘mãe’. Ela não só recebe o crédito de ser a mãe de todas as divindades, mas também foi a primeira a decidir sobre a criação dos seres humanos, ato realizado por sua filha Ninmah. Na Mesopotâmia, a grande mãe sumero-babilônica era Tiamat, a serpente gigante, cujo corpo forma o universo.

No Egito, ela era Temu, a mais antiga das deidades, mãe da arcaica enéada de quatro elementos duais: água, escuridão, noite e eternidade. Como a vaca celeste que é a imensidão do céu estrelado, Nut emerge das primordiais águas da inundação do Nilo como Senhora do Céu, personificando as águas do caos original.

A grande mãe romana era Juno, criadora do universo e mãe que traz luz aos olhos do recém-nascido, quando era chamada Juno Lucina, a Deusa da Luz Celestial. Seu nome deriva da palavra etrusca Uni, a deidade três-em-um, cognata com yoni e Universo. Juno é a partícula da Deusa em cada mulher, forma feminina correspondente ao gênio masculino.

Para os pueblo do sudoeste da América do Norte, a grande criadora do mundo é Spider Woman (Mulher Aranha): “No começo havia apenas Spider Woman. Ela era chamada Sussistanako, Mulher Pensante, Mulher Pensamento. Nenhuma outra criatura vivente, nem pássaro ou animal ou peixe ainda viviam. Na escura luz púrpura que brilhava na aurora do Ser, Spider Woman teceu uma linha de leste a oeste. Ela teceu uma linha de norte a sul. Então ela sentou-se junto a estas linhas que alcançavam aos quatro horizontes, estes fios que ela desenhou através do universo, e cantou numa voz que era excepcionalmente profunda e suave. À medida que cantava, duas irmãs surgiram: Ut Set que se tornou mãe dos pueblo e Nan Ut Set que se tornou mãe de todos os outros.”

A mãe das divindades astecas era Coatlicue, que dá a vida e a toma na morte. Nos mais antigos dias dos povos do México, a mãe Coatlicue escondia-se no nebuloso topo da montanha no país de Aztlan, enquanto seus servos-serpente viviam dentro das cavernas da montanha. Desta casa secreta ela deu nascimento à luz e ao sol e a todas as estrelas no céu.

No centro-norte da Austrália, a mãe primordial chegou pelo mar. É chamada de Kunapipi e os espíritos dos mortos permanecem em seu útero até o próximo renascimento, enquanto o espírito ‘gêmeo’ ou ‘duplo’ de cada pessoa permanece com ela todo o tempo.

Com o advento do cultivo da terra, ela aparece como Deusa do Grão e das Plantas, guardiã dos ritos do plantio e da colheita, representando a fertilidade da terra e a fecundidade das mulheres. Sua principal epifania (manifestação na Terra) era a porca, por seu rápido crescimento, sua prole abundante e seu aparente hábito de ‘arar’ a terra com o focinho.
Os primórdios da humanidade

A evolução dos hominídeos iniciou-se há aproximadamente 6 milhões de anos. Quando nossos ancestrais começaram a enterrar seus mortos nas cavernas, há aprox. 100 mil anos, inicia-se a epopéia da espécie humana.

A herança material que estes ancestrais remotos nos deixaram são os artefatos e ossadas encontrados em sítios arqueológicos em todas as regiões do planeta, bem como as inscrições rupestres nas cavernas e rochas. Eles desenvolveram ferramentas e símbolos, usaram crânios de ursos em seus rituais, estruturaram santuários e enterraram cerimonialmente seus mortos, aspergidos com ocre vermelho, símbolo do sangue da vida. Enterravam-nos nos fundos das cavernas, onde reinava a absoluta escuridão cósmica, o silêncio das extensões internas imensuráveis, à distância infinita de qualquer atividade normal. Em outras palavras, depois da morte, retornavam ao útero materno para dele renascer.

A linhagem à qual pertencemos (homo sapiens ou moderno) surgiu por volta de 40 mil anos atrás. Estes nossos ancestrais levavam uma vida nômade e viviam da coleta e da caça. Este período, denominado de paleolítico ou Idade da Pedra Lascada, corresponde ao final da era glacial e o habitat terrestre então era bastante frio e árido.

No paleolítico, o clima da terra era intensamente gelado devido à glaciação e os principais animais caçados eram o mamute lanoso, o rinoceronte lanoso, o urso e a rena, os poucos animais capazes de sobreviver neste clima. Os períodos e os campos de caça parecem ter sido muito espalhados, mas relativamente imutáveis, manifestando-se a força e o poder das mulheres sob a proteção das habitações (cavernas). Dão testemunho disto as inúmeras estatuetas femininas esculpidas em osso, pedra ou marfim de mamute. Nuas e eretas, muitas delas apresentam seios fartos, quadris largos, o triângulo púbico marcado; não tinham pés, pois eram fincadas diretamente na terra. Figuras femininas de madeira de lariço e álamo ainda são esculpidas hoje pelos caçadores de renas da Sibéria, representando o ponto original ancestral de todo o povo. Com o recuo das geleiras, o clima se aqueceu e a tundra se transformou em estepe, possibilitando o surgimento do cavalo das estepes, o bisão, os antílopes e asnos selvagens. As cadeias montanhosas da Europa se cobriram de coníferas e as florestas forneceram alimento e abrigo a uma variedade de vida animal e vegetal.

As cavernas do norte da Espanha e sudoeste da França testemunham uma riqueza cultural que se expandiu, por volta de 25 mil anos antes do nosso tempo, desde a Espanha até a Sibéria, e criou os fundamentes das culturas neolíticas posteriores.

Após um novo período de frio, o clima esquentou novamente por volta de 10 mil anos atrás e os animais de clima frio se deslocaram em manadas para o leste, seguidos pelos caçadores. O nomadismo dos caçadores reduziu a importância e a força das mulheres, ao contrário dos agrupamentos humanos que permaneceram nos vales dos grandes rios e cavernas e que desenvolveram a cultura agro-pastoril, levando a arte paleolítica ao seu apogeu.

Em torno de 10 mil anos antes do nosso tempo, surgem ferramentas mais aprimoradas, que dão nome a este período, chamado de neolítico ou Idade da Pedra Polida. É também deste período o desenvolvimento do plantio e do modo de vida agro-pastorial, a chamada grande revolução neolítica. O aparecimento da escrita, da metalurgia e das primeiras cidades com um poder centralizado marcam a transição do neolítico à Idade do Bronze, em torno de 2.000 e 1.600 antes da era comum. Com o surgimento de grupos guerreiros na região central eurasiana, conseqüência do desenvolvimento da tecnologia dos metais, inicia-se a Idade do Bronze, seguida de perto pela Idade do Ferro, em cujo declínio vivemos.

É este período que vai de 30.000 a 1.000 anos antes do nosso tempo que alguns estudiosos denominam de matriarcado, tema dos mais controversos. Partindo-se da realidade do patriarcado, isto é, o domínio do pai e de sua lei, lê-se matriarcado como o domínio da mãe. Mas o sufixo grego ‘arché’ tem dois significados, um mais atual que quer dizer ‘domínio’ e neste sentido compõe a palavra ‘patriarcado’: sistema social hierárquico, onde a figura central de poder é o pai. Mas ele também tem um sentido mais antigo de ‘no começo’ e neste sentido compõe palavras como ‘arcaico’, ‘arquétipo’ e ‘matriarcado’, que então quer dizer ‘no início, a mãe’. Deste modo, matriarcado não é a contrapartida feminina de patriarcado, assim como a Deusa não é o aspecto feminino de Deus. Ela é a fonte da vida e o destino na morte, tendo como sua representante humana a mulher, por esta razão respeitada e honrada.

A Arqueologia revelou cidades que comprovam a existência destas sociedades, tais como Çatal Hüyük na Anatólia (hoje Turquia), que tinha cerca de 10.000 habitantes e foi datada em 9.000 antes da era comum. Ou como Mohenjo-Daro e Harapa no Vale do Indo (Ìndia), com aprox. 40 mil habitantes. O início do desenvolvimento da agricultura nos férteis vales do rio Indo remonta a 5.000 antes da era comum, quando grupos vindos do Irã se alojaram no Punjab, onde fundaram uma cultura local denominada de Harapa. Por volta de 3.000 anos antes da era comum, a cultura harapiana já florescia em vilas e cidades que, como indicam escavações arqueológicas, se estendiam por mais de 1.500 km ao longo das margens do rio Indo e seus afluentes.

As cidades de Harapa e Mohenjo-Daro foram construídas orientando-se pelos pontos cardeais, com ruas em ângulos retos na direção norte-sul e leste-oeste. O poder religioso e secular estava localizado a oeste, as moradias a leste, com casas tendo em parte mais de dois andares, sem janelas para a rua, os quartos se agrupando em torno de um pátio central, com banheiros nas casas, piscina municipal e sistemas de canalização de água e esgoto. Tudo isto aponta para um alto nível técnico e cultural de seus habitantes. Dispunham de uma escrita, ainda não totalmente decifrada. Os selos abundantes eram quadrados, com uma inscrição pictórica, além de apresentarem, em relevo, um animal, uma divindade ou uma atitude de culto. Exerciam um comércio intenso, que começou a declinar no segundo milênio antes da nossa era.

Estas cidades revelam a existência de um longo período de paz e prosperidade, durante o qual ocorreu uma revolução social, tecnológica e cultural, com a criação das tecnologias básicas nas quais se fundamenta nossa civilização atual, sociedades em que não havia dominância, que não eram violentas nem hierárquicas. A este sistema social equilibrado, nem patriarcal nem matriarcal, refletido nas religiões, nas mitologias, no folclore, e nas estruturas sociais, Riane Eisler denominou de gilania (gy=mulher, an=homem, o l como vínculo entre os dois).

Estudos como o de Riane Eisler demonstram que estas sociedades tinham uma estrutura social de parceria, diferente da estrutura social de dominação, onde predominavam qualidades como cuidado, compaixão, não-violência.

Em seu livro Um é o Outro, Elisabeth Badinter analisa as relações entre os sexos e demonstra como, de uma relação onde um e outro sexo tinham suas atribuições específicas (divisão de tarefas = complementariedade), nossos ancestrais passaram a uma relação em que um sexo se sobrepõe ao outro, a complementariedade cedendo à dissimetria, cujo expoente é a exclusão de um grupo sexual, no caso as mulheres. A visão para o futuro é o desenvolvimento da simetria, onde há igualdade na diferença. Nas sociedades matricentradas, a organização social girava em torno da mãe. Isto quer dizer que a mãe e sua prole eram o núcleo do clã/tribo/grupo/família. Por ocasião do casamento, o homem deixava seu lugar de nascimento e passava a viver no grupo da mulher, temporária ou definitivamente. As mulheres cultivavam a terra coletivamente e passavam esta tarefa às suas filhas. Matrilocalidade e matrilinearidade enfatizavam a ligação mãe-filha como o centro da vida comunitária.

Ao longo de um processo de desenvolvimento, não no sentido linear de um ponto ‘menos’ para um ponto ‘mais’, mas no sentido daquilo que está envolvido, contido, e se des-envolve, se manifesta, a Deusa partenogênica, que cria o mundo sozinha e está sempre em companhia de seus animais, começa a vir acompanhada de um parceiro masculino, de início seu jovem filho, depois o herói a seu serviço e, finalmente, seu consorte.
Projetando o futuro

O culto à Deusa está intimamente associado com os elementos naturais, cósmicos e terrenos, vegetais, animais e humanos. A Deusa não é um conceito paralelo a Deus. Ela abarca e contém toda a vida, todos os seres, todos os fenômenos. Ela é a totalidade pré-polarizada, não há nada que ela não é. Seu culto era tão variado quanto são as condições naturais. Era realizado junto a fontes, rios, montanhas, vulcões, lagos, árvores. Os animais eram sua epifania e como Senhora dos Animais, em cada lugar recebia um nome, tinha um lugar de culto, possuía um ou mais animais sagrados. À medida que os grupos humanos organizaram e estruturaram sua percepção do mundo, ela foi concebida como a Deusa Trina: rege o céu, a terra e as águas profundas; manifesta-se como a jovem donzela da primavera, a mulher na maturidade do verão e a anciã na sabedoria da velhice. Ela reina sobre o nascimento, a vida e a morte.

Mas gradualmente estes aspectos foram sendo separados e o Grande Feminino do início dos tempos foi decomposto em aspectos limitados, preferindo-se uns em detrimento de outros.

Resgatar o feminino e a Deusa não significa restabelecer uma sociedade matricentrada. Significa recuperar qualidades e valores fundamentais para nossa sobrevivência e a do planeta. Significa honrar todos os seres como originários de uma mesma fonte e com direitos iguais. O movimento ecológico, o movimento feminista e o movimento espiritualista são canais para manifestar a energia do feminino.

E cada uma e cada um de nós é uma pequena porta de entrada para os valores do feminino, se pudermos abrir o nosso coração para a presença da Deusa.

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Anjos - Anjo da Paz

“A Magia é o estudo sério das leis que regem as forças que nos rodeiam e que são postas em ação pelo poder da Vontade; a Magia é a ciência que ativa a potência do verbo e, sobretudo, dirige e concentra o poder do Amor, porque a magia não é branca e nem negra. A cor da Magia está no coração de quem a pratica.”

(Márcia Villas-Bôas)